Viagem ao Interior – texto de Mário Fontanive para exposição “Soçobro”, individual de Lilian Maus

Astrolábio

Neste mundo decifrado
navego a
lâmina rasa.

Beijo a boca.
Sigo o gesto.

Busco no meu verso
o mar silenciado.

Recolho os sinais
da cidade
submersa.

Foto: Marina Raymundo da Silva (Arquivo Antônio Stenzel Filho, Osório/RS)

Viagem ao interior 
Quando a Lilian iniciou o doutorado, ela resolveu que iria para Osório, seria mais correto dizer que ela resolveu voltar para Osório, cidade onde passou parte da infância. Quis se afastar dos ruídos da cidade, de todos os ruídos, desde os físicos até os simbólicos. Buscava um silêncio, silêncio ou solidão são retiros onde talvez possamos ter uma medida melhor de nossas buscas. No silêncio ouvimos sons que normalmente estão escondidos sob camadas de outros sons, fazemos silêncio para escutar murmúrios, perceber discretos índices normalmente inescrutáveis. O silêncio é talvez um espelho onde podemos mergulhar mais atentos. Como disse o poeta, todo estado da alma é uma paisagem, tudo contém muito se os olhos bem olharem. Os silêncios, os vazios têm potências e o artista pode tornar político o que está escondido, abafado pelo barulho cotidiano.

Em Osório a Lilian teve o encontro com este silêncio próprio da paisagem interior, mas, além disto, encontrou o silêncio de outras paisagens, daquela da infância, da geografia, da natureza e da história. No início desse retorno, ela trabalhou no atelier, mas logo teve o interesse despertado pelo lugar. O artista precisa manter uma certa distância do objeto de sua atenção, não é interessante que sufoque o que está diante dele com concepções preestabelecidas. Deve deixar o objeto falar e, assim, o ambiente foi apresentando várias vozes para ela, ou é possível afirmar: várias vozes desveladas por ela. A arte produzida se mostrou sob muitas faces.

Calmaria na Lagoa do Peixoto ou O dia em que a montanha desapareceu

Uma paisagem pode ser traduzida como a história do desenvolvimento das atenções e das ações de cada um em determinado lugar. É fruto de um aprendizado, e esse aprendizado está vinculado às relações com o lugar e com o tempo. Podemos dizer também que a formação da atenção e da consequente construção das paisagens por nós percebidas está vinculada à memória das nossas ações nos lugares. A Lilian estabeleceu um encontro das ações dela com outros atores, com outras vidas. As paisagens são leituras particulares dessas alteridades derivadas desses encontros.

Um dos encontros da Lilian foi com as histórias do lugar: ruínas, lendas, jornais, filmes, mapas, entre outras coisas que chamaram a atenção da artista e se tornaram objeto de trabalho. As lagoas do litoral norte gaúcho são interligadas por canais, onde é possível navegar de norte a sul de barco. Uma das histórias dessas navegações trata do naufrágio do barco Bento Gonçalves, em 1947. A artista cercou este evento com o levantamento de documentos históricos,  a criação de registros próprios e a reconstituição do trajeto original do barco naufragado que ela realizou juntamente com o pescador José Ricardo, no barco Beija-flor. Em um encontro de passado e presente, com fotos e relatos da época e também o seu próprio registro fotográfico, a artista cria uma narrativa densa sobre o imaginário do lugar. O que significa compreender? Para Hannah Arendt, a compreensão é um processo complexo que, diferentemente do processo científico, nunca gera resultados inequívocos. A compreensão é necessariamente autocompreensão, a verdadeira compreensão sempre retorna aos pressupostos e juízos, modificando aquele que observa. O trabalho da Lilian é mostrar este processo, o processo de tornar uma geografia um lugar, de habitar um lugar. Ela colhe coisas e recolhe suas próprias metamorfoses nos seus trabalhos. Dissolve o conhecido no desconhecido, a imaginação pode dizer respeito à densidade do real apreendida pela constante mudança e variação das narrativas. Esta é a paisagem dos trabalhos da Lilian.

Quando o Minuano interrompeu a travessia do Beija-flor por águas doces

Texto do Prof. Dr. Mário Furtado Fontanive, Depto. Design/UFRGS, para exposição Soçobro, individual de Lilian Maus. (fotos ilustrativas compõem a mostra)