Olho D’água

Como se houvera um tempo em bug, no qual não pudéssemos mais compreender quais são esses dias e horas em que estamos vivendo na atualidade, a exposição individual Olho D’água, de Lilian Maus, nos é apresentada neste exato espaço de suspensão inesperada da realidade. A Lagoa dos Barros, no Rio Grande do Sul, situada entre os municípios de Osório e Santo Antônio da Patrulha, com seu contorno geográfico remetendo a um desenho no formato de coração, é transformada pela artista em pano de fundo desta profunda pesquisa artística.

Em meio a área expositiva, vestígios de uma embarcação apontam a dimensões insuspeitas da experiência da artista ao longo do processo de vivências em campo. A presença de uma pequena estrutura esqueletal fossilizada na mostra nos exige rever a movimentação de Lilian Maus em sua busca específica por pistas encontradas neste terreno aquoso. O trabalho de Lilian Maus em Olho D’água é irrompido pela força da narrativa da figura camaleônica de uma escritora-detetive, que nos revela em minúcias o seu convite feito a percepção do portal da viagem no tempo. A visão de suas pinturas em tons azul-violeta nos transporta a campos de lavanda, e nos conecta ao bem-estar da chama. O vídeo em exibição insinua a silhueta de uma ninfa, a reencenação singular do corpo flutuante de Ofélia sobre as águas. O senhor José Ricardo de Queirós aparece como o objeto trazido pelas marolas à margem na forma de pescador, parceiro e protagonista dessa imagem em movimento; e acaba por codificar a mensagem na garrafa da obra.

A mesma Lagoa de Barros é locação, testemunha principal e desfecho da investigação forense acerca de um crime passional ocorrido em agosto de 1940. A lagoa não desvenda, mas oculta ainda mais o mistério de tal caso, o que gerou a compilação de inúmeros relatos de avistamento de assombração por parte das famílias dos habitantes da região, antes e depois do assassinato – a lenda do fantasma da noiva. Está organizado para a exposição o acesso a um arquivo com material documental de textos e fotografias de imprensa e polícia. Vem à tona excertos de publicações da revista Vida Policial, na qual a energia discursiva da polícia era projetada sobre a sociedade pela propaganda rigorosa e controlada pelo Estado Novo do período Vargas (1937 – 1946). Pela manipulação dos registros de época postos em exibição, é possível averiguar como polícia e imprensa colaboravam mutuamente, fosse ao noticiar, verdadeiramente ou não, filiações a associações nazifascistas por parte de certos cidadãos de ascendência européia residentes no país nos anos da II guerra mundial, ou ao anunciar crimes hediondos de feminicídio.

Sob as circunstâncias da tragédia amorosa da Srta. Häussler e de Heinz Werner, juntamente ao ato de amor de Lilian Maus por resgatar a memória de ambos os jovens, completa-se a exposição Olho D’água algo que se comporta de maneira não intencional: uma metáfora para tentarmos analisar criticamente as origens históricas da pesada atmosfera em que nos vemos novamente asfixiados nos dias de hoje.

 

Marcio Harum
outubro de 2018