Como surge um mito?

Transitando entre as linhas de verdade e ficção, a artista visual e professora do Instituto de Artes da UFRGS, Lilian Maus, monta uma atmosfera quase suspensa entre mundos para lançar sua exposição de inéditas, denominada Linhas Cruzadas. Ela marca o início da programação de 2021 da Fundação Força e Luz, antigo Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, que passa por um processo de reestruturação.

O trabalho foi desenvolvido durante a Residência Artística Casco (financiada pela Lei Aldir Blanc) em fevereiro de 2021. A artista, que já pesquisava a região do Litoral Norte Gaúcho há mais de oito anos, contou com a colaboração da comunidade de Osório e do distrito de Passinhos para realizar o conjunto de obras em escultura, audiovisual, fotografia e pintura que serão apresentadas na mostra. 

Segundo a artista, o trabalho busca compreender e interpretar esta fascinante paisagem através dos caminhos percorridos por terra, água e ar no desenvolvimento da região. Para tanto, Lilian utiliza-se de documentos do Arquivo Histórico Antônio Stenzel Filho, bem como de álbuns de família, oralidades e lendas dos moradores para delinear este território. Além de muitos materiais históricos do Museu da Eletricidade do Rio Grande do Sul, como mapas dessa região.
        O objetivo do projeto é compreender, através da escuta e da sensibilidade artística, como se relacionam mitos e relatos históricos nessa paisagem de traçados desenhados por carretas, cataventos, trilhos de trem, linhas telefônicas e de transmissão de energia, além de embarcações nas hidrovias lacustres. “No fundo, essa exposição está falando sobre redes de conexão entre pessoas, entre tecnologias, entre artesanias, em diálogo com outras linguagens de comunicação e desenvolvimento socioeconômico”, explica.

A sala Arquipélago, da Fundação Força e Luz, será ocupada por mais de 30 jangadas produzidas a partir da experiência da obra Ygápeba (jangada em tupi guarani), na qual Lilian Maus fez a embarcação flutuar em chamas pela Lagoa dos Barros, com o intuito de criar mais uma lenda urbana nesta paisagem cultural.
        No dia 11, às 12h, vai acontecer uma Live Vernissage no instagram, onde a própria artista mostrará uma de suas instalações. A mostra ficará aberta à visitação de 11 de maio ao dia 12 de junho, de terça a sexta, das 10h às 19h. Para visitas mediadas é preciso se inscrever através de um formulário que está na bio do perfil da instituição no instagram @cccev_cultura.  Podem ser agendadas datas de terça a sexta, das 14h às 18h, com grupos de no máximo 6 pessoas, porém a inscrição no formulário é individual. Serão seguidos todos os protocolos da Secretaria de Saúde, portanto essa programação pode  sofrer alterações.

Sobre o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

Retornando às raízes, o espaço cultural adotou, provisoriamente, o nome de sua nova administradora: Fundação Força e Luz. Ele continua abrigando o Museu da Eletricidade do Rio Grande do Sul, o Memorial Erico Verissimo, o Auditório Barbosa Lessa e as salas multiuso na mesma sede: Edifício Força e Luz, Rua Andradas,1223.

As margens de Lilian

 

O que espera por você, caro visitante, são imagens e objetos desprendidos de um percurso alegre e amoroso, fragmentos de uma aventura vivida nos últimos oito anos por Lilian Maus no Litoral Norte gaúcho, com base na cidade de Osório, onde ela mantém seu atelier.

Salta aos olhos o fôlego dessa nova série de trabalhos da artista. Saída de uma intensa imersão na região durante o verão de 2021, Lilian chega carregada de fragmentos sólidos – a alegria da matéria –  testemunhos e imagens colhidas junto a moradores. Compõe sem se preocupar em formar estrutura, libertando um caleidoscópio de quimeras: um barco meio carreta, uma lagoa incendiada, fantasmas que respiram junto a estas paredes.

Você olharia sobre seu ombro agora?

Mistura pedaços de vida com partes de fábulas, fragmentos de paisagens e avistamentos; a noite e o dia de tempos distantes. Tudo oriundo de lá, do seu chão e das suas águas.

Configurações e formas acabadas pouco podem diante de uma paisagem toda feita de água. Então, caro visitante, prepare-se para um mundo em pedacinhos, sacie-se com imagens vazantes que apenas tangenciarão seu corpo e se evadirão. Elas estão de passagem, é de sua natureza sempre ir e se volatizar gratuitamente em espirais, oscilar com a firmeza dos juncos da Pinguela – e Lilian navegou por aquela lagoa, mansa na superfície, mas insaciável nas profundezas. Próximo à água, em figueiras nas quais escravizados se enforcaram, ainda tremulam restos de corda pendentes.

Você acredita em barbas-de-pau?

Nas areias brancas da Lagoa dos Barros são poucas, as figueiras. Em contrapartida, lá no meio, onde ninguém ousa navegar, uma cidade emerge em noites de luar para voltar a afogar-se antes do amanhecer. Algumas das aquarelas que você está prestes a apreciar nasceram em uma sexta-feira de lua cheia na margem daquela lagoa. Lilian estava lá, mas não entreviu, entre os juncos, o vestido branco da jovem que espiava um barco flamejante.

Você pode respirá-lo na sala ao lado. Você pode respirá-la.

Lilian Maus vem de um lugar assim, uma terra de vento forte e sambaquis eternos. Onde se vencem batalhas fazendo do barco, carreta, e do campo, oceano.  Ela poderia nos contar muito mais histórias, seguir contando-as para além dessa exposição. Lilian está embriagada por elas, as derrama com as mãos em concha, as repete pelo mimeógrafo, as modela em pequenos arranjos com cheiro de vento.

Onde range o carro de boi, uma moça se levanta intacta após dias mergulhada entre raízes de juncos. E o luar banha uma quimera terrestre que navega em chamas.

E uma cidade se aquieta nas profundezas da lagoa.

E é tudo verdade.

Você submergiria comigo na próxima sala?

Maria Helena Bernardes, artista visual, escritora e professora de história da arte, 2021.

**Linhas cruzadas (veja galeria completa)