Isabel Waquil: Em textos e catálogos são recorrentes as aproximações entre tua obra e elementos da natureza, fenômenos naturais, paisagens, jardins, etc. Tem algo específico que te inspira a produzir, a criar?

Lilian Maus: Há situações que me inspiram mais, com certeza, e acho importante criar condições favoráveis – em meio às atribulações do dia a dia – para o desenvolvimento do trabalho artístico. Daí a criação de um ateliê fora da capital, em Osório, uma cidade litorânea aparentemente pacata, repleta de paisagens idílicas e lendas, situada em uma região geográfica fundamental na história do povoamento do Rio Grande do Sul. Gosto de ter meu ateliê nessa cidade, porque ela também faz parte do meu imaginário infantil, já que nela eu morei parte da infância até completar os 15 anos, quando me mudei para Porto Alegre. Retornar a essa cidade me faz confrontar a minha percepção atual com os lugares perdidos na memória, é algo que desencadeia em mim uma espécie de “choque” e, ao mesmo tempo, um fluxo de consciência interessante para o processo criativo, traz um pouco dos ares de Walter Benjamin, em seus escritos “A infância em Berlim por volta de 1900”.
A maior lição que tiro do meu ateliê montado na cidade de Osório é esta: na arte, assim como na vida, nunca temos o controle de tudo e, muitas vezes, o ambiente nos mostra soluções incríveis para os nossos problemas, é preciso estar atento ao entorno, estar aberto à assimilação dos fluxos e acontecimentos dentro dos quais estamos inseridos e ter ciência das nossas limitações.

IW: Essa convivência em teu atelier em Osório (RS), região de litoral, lagoas e montanhas, reflete de fato em tua produção?

LM: Acho que a nossa relação com o entorno é sempre um paradoxo. No caso específico da paisagem de Osório, depois de um tempo, até o Morro da Borússia, que corta o horizonte da cidade inteira, acaba se tornando, para os moradores, apenas um ponto de referência para o deslocamento na cidade. Aos poucos, também a imensa montanha da Serra Geral se perde na periferia do olhar. Por maior que ela seja, deixamos de reparar nela, esquecemos o quanto o verde da vegetação varia diariamente nessa muralha, dependendo da umidade do ar e da luz solar que incide sobre ela. Mais do que ver, é preciso reparar no entorno. As coisas estão sempre a se perder e vejo a arte como um modo de resgatá-las. Em compensação, algo invisível como o vento, é constantemente retomado nas falas cotidianas dos moradores da cidade. Quando eu era pequena me lembro dele ser sempre um motivo de queixa das pessoas, agora vejo que o discurso mudou. Graças ao investimento na região da usina eólica, o vento passou a ser fonte de energia e também um motivo de orgulho na “cidade dos bons ventos”, ainda que se reclame quando ele levanta a saia das moças, faça voar o dinheiro ou atrapalhe, em meio a fortes rajadas, as caminhadas na praia ou os deslocamentos de bicicleta.

É interessante também pensar que o que me levou inicialmente a construir o ateliê em Osório não foi bem a paisagem, mas, sim, o meu desejo de maior isolamento e as facilidades estruturais que eu teria na cidade, onde reside minha mãe. Na época, ela viajava muito à cidade do Recife, onde meu pai estava morando, e a casa dela estava constantemente desocupada, enquanto isso, eu seguia pagando um aluguel caro em Porto Alegre para ter um espaço muito menor dividido com outras pessoas. Ela me propôs essa ideia e eu topei, já que na época eu também geria o Atelier Subterrânea e sentia a necessidade do afastamento físico de Porto Alegre para poder me concentrar melhor no meu trabalho autoral.

Aos poucos, fui percebendo que o mesmo olhar que constrói os meus desenhos foi se construindo junto dessa paisagem de Osório, com grandes alagados e esse morro sinuoso. Fui redescobrindo desenhos e hábitos infantis perdidos, revendo as pinturas da minha mãe, que é muito talentosa, em suma, essa paisagem externa da região foi se revelando para mim juntamente com a paisagem doméstica da minha casa de infância, onde acabei montando meu ateliê no piso superior. Vale lembrar que eu deixei de conviver diariamente com minha família desde muito cedo, aos 15 anos passei a morar só em Porto Alegre. Por um bom tempo – enquanto nossas agendas e interesses confluíam – as viagens em família funcionaram como um mecanismo para nosso convívio, ainda que, muitas vezes, em experiências bastante conflitantes.

Sinto que hoje, com a construção do meu ateliê junto da casa da minha mãe, estou tendo uma oportunidade única de convívio com meus pais, que estão aposentados. Tem sido um mergulho e tanto! Uma avalanche que mistura, num grande emaranhado, o resgate da minha família de origem, a construção do ateliê individual, afirmação profissional e o final da minha tese de doutorado, tudo isso diante da imersão em uma paisagem tão antiga e tão nova para mim. É como resgatar algo que estava tão perto das mãos, mas se manteve, por muitos anos, invisíveis aos olhos. Sem dúvida tem sido uma experiência forte e tenho visto brotar dessa cidadezinha, aparentemente pacata, uma complexidade envolvente que me remete àquelas atmosferas de mistério dos filmes de David Lynch.

IW: Tu percebes estas diferentes atmosferas em tua obra?

LM: Com certeza! Não por acaso surge uma série de desenhos e vídeos que chamo de “Desenhos atmosféricos”. Às vezes eles são desenhados por mim, outras, são algo que capturo, por meio do vídeo e da fotografia, do entorno. Há muita coisa para explorar na região e meus trabalhos atuais falam direto com e dessa paisagem de Osório. Aqui é importante frisar algo que Julio Cortázar trabalha tão bem em o “Jogo da Amarelinha”: o entendimento da realidade como algo maior do que simplesmente o que se apresenta frente a nossos olhos. Ela abarca também o fantástico, o obscuro, o sonho, a desordem, o incognoscível.
Outro episódio interessante que ocorreu há uns meses em Osório e que revela essas sincronicidades estranhamente familiares da vida foi o redescoberta de minha primeira redação da escola, escrita na segunda série do fundamental, o título era “O vento”, o enredo era as relações familiares entre personagens que levavam o nome dos diferentes tipos de vento. Vida e ficção se misturam sempre, é inevitável. E acabei revisitando esse texto enquanto trabalhava na série “Atlas cosmográfico”, em que me dedico, dentre outros elementos da paisagem, ao estudo sobre o vento. No fim a gente anda tanto e acaba retomando essas questões que nascem espontaneamente dentro da gente lá na infância. Parece que dar seguimento à produção artística traz, dentro de si, também uma espécie de retorno. É como se mergulhássemos fundo, e, no fim, tivéssemos que, inevitavelmente, voltar à superfície para recuperar o fôlego.

Osório ajuda nisso – nas reflexões sobre o tempo, o movimento e a impermanência das coisas que sempre motivaram meus trabalhos. Ao lado disso está também o hábito de viajar, que me acompanha desde a infância, quando, em família, realizávamos trajetos que duravam os meses das férias escolares. Costumávamos fazer o longo percurso on the road entre Osório/Salvador (minha cidade natal), chegando até o Rio Grande do Norte e retornando ao extremo sul do país. Outras vezes, viajávamos por diversos países, na América Latina ou na Europa, onde tive meus primeiros contatos com grandes museus. Além disso, foi a partir dessas experiências de viagens que pude experimentar a vida guiada não apenas pelo relógio, calendários e mapas, mas, principalmente, pelos episódios e vivências nos percursos, com todos os seus imprevistos. Tudo se alterava no meio do caminho, era preciso improvisar e isso era tenso, mas também o mais divertido. Os meus melhores relatos de viagem resguardam esse clima de aventura. Nesta época, finais dos anos 80 e durante os 90, não tínhamos acesso fácil à Internet, tampouco carregávamos celulares. Realmente, as viagens eram cheias de surpresas e havia diversas aventuras para contar depois, como a vez em que perdemos meu irmão caçula, o Felipe, no Paraguai. Lembro também de uma ocasião, no interior da Alemanha, em que não tínhamos onde dormir e nevava muito, até que meus pais bateram na casa de uma senhora que, por acaso, era amiga de um dono de hotel da região. Mesmo com o hotel fechado a senhora foi atrás da chave para que pudéssemos pernoitar lá, ela se assustou ao ver “zwei Kinder!” no carro. E assim, como em um golpe de mágica, tínhamos, por uma única noite, um hotel inteirinho para nós! Foi uma maravilhosa noite na piscina em plena nevasca! Por sorte, ao final das viagens, sempre tudo acabou bem, apesar dos conflitos, das tensões e do pequeno espaço de convívio – eu e meu irmão dividíamos um colchãozinho atrás do carro.

IW: De que modo tu vês essa relação entre situações de viagens/deslocamentos e a tua produção artística?

LM: Para mim, os projetos artísticos resguardam muito desse espírito de aventura e abertura aos encontros produzido pelas viagens. Ao mudarmos de ambiente, abrimos nossos pulmões aos ares do futuro, que vêm até nós como a mancha borrada da paisagem que passa pela janela. Aos poucos, é preciso equilibrar o olhar entre a janela lateral (que produz em nós aquela náusea típica do movimento constante que impede nossos olhos de focar) e o para-brisa frontal ou traseiro, onde é possível criar, ainda que temporariamente, um ponto focal a partir das linhas guias em perspectiva da estrada, produzindo este fenômeno em que, parafraseando Octavio Paz (El mono gramático), “a fixidez é sempre momentânea”. Paradoxalmente, a maior parte do tempo de qualquer viagem ou projeto artístico se dá nesse período de tédio, em que estamos a caminho de um “grande acontecimento” e nada parece acontecer de fato. E os relatos finais costumam suprimir esses instantes vagos. Além disso, as viagens nos ajudam a perceber o quanto a própria percepção da paisagem e a construção da nossa identidade se dá sempre em relação ao outro e, ao mesmo tempo, a partir dos códigos da linguagem que disponibilizamos no momento. É algo cultivado, e, por sorte, construído também por lapsos e desvios. Construir uma obra é, em certa medida, tecer uma espécie de relato de viagem, onde o artista compartilha uma visão de mundo a partir da reunião de fragmentos, ações e registros que juntos conformam uma espécie de castelo de areia, a espera da próxima onda, do inevitável desmanche e de um possível recomeço.

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(Foto: Lilian Maus, “O Paraíso é aqui”, 2015)

Gosto também de comparar a ideia de produção de uma obra com o cultivo do jardim, onde é preciso agir, mover a terra, buscar e plantar sementes, mas sempre observando o terreno, o clima, vendo o que brota, o que morre, perceber as interações todas que ocorrem nesse pequeno espaço. Às vezes esse espaço pode ser uma pequena folha de papel. Há situações em que há um controle maior do processo, que podemos associar à precisão dos jardins geométricos franceses, já noutras, há uma espontaneidade maior, como ocorre nos jardins ingleses.

Voltando à outra questão, sobre a minha relação com a natureza, eu diria que, mais do que a simples observação de fenômenos naturais, o que me instiga sempre é colocá-los em relação à produção cultural do homem. Lembro agora de uma entrevista de Wim Wenders em que fala desse poder da paisagem de contar sobre a ação humana mesmo na ausência da figura do homem. Gosto de entender a natureza não como algo apartado de nós, mas do qual somos constituídos. Mais do que um ambiente harmônico e acolhedor, tão explorado atualmente pelo mercado, a natureza traz também o caos, essa força horizontal e sinuosa que tentamos controlar através da verticalidade e das linhas ortogonais das cidades, mas que está presente em nossa própria constituição, em nossos genes.

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(Foto: Lilian Maus – “Tramas do orvalho”, no jardim do ateliê de Osório, 2015)

IW: Flávio Gonçalves, a respeito do teu trabalho, escreve que “O que a artista põe em relação são esses processos ao acaso que formam a periferia da nossa atenção, e que ela transforma em ação e determinação”. Como se desenvolveu tua atenção para com estes processos ao acaso que dão vida a algumas de tuas séries?

LM: A nossa própria construção cultural do olhar é bastante comprometida com o que entendemos como sendo importante ou “digno de nota” e aquilo que é entendido como sendo da ordem do descarte ou apenas um detalhe insignificante, que faz parte do grande plano de fundo borrado e não da figura, à qual atribuímos o foco, a importância. Não por acaso, edificações e objetos em ruína, pequenos insetos, palavras pouco legíveis e coisas que às vezes passam batido a um olhar mais apressado fazem parte do meu repertório, instigando-me a colocar em questão os limites tênues entre os processos naturais e artificiais dentro dos quais estamos inseridos. Em geral buscamos manter sob controle a tendência natural dos sistemas à entropia e ao desgaste.

Mesmo uma superfície de concreto, tão sólida, com o passar do tempo, abre-se em rachaduras e, pouco a pouco, vai sendo tomada por plantinhas aparentemente tão frágeis e que se expandem. Sem a intervenção humana de reparo, tornam-se futuras florestas. Assim também são os nossos conceitos, nos quais, por meio das ideias e das palavras, tentamos provocar certa fixidez momentânea, enquanto as palavras vão, em outros contextos, ganhando novos sentidos. Daí vem meu interesse nos desmoronamentos da linguagem, nos ruídos dos cartazes e letreiros sobrepostos na cidade, os quais Julio Cortázar chama de “poemas anônimos.”

Sempre me pareceu extremamente oportuno observar esses fenômenos que emanam de ações aparentemente aleatórias, produzidas no decorrer da passagem do tempo. Em todos os sistemas, inclusive na construção da linguagem e do olhar, como bem reforça Michel Foucault, há pontos de obscurecimento e de desvios e essas falhas sempre me parecem um excelente ponto de partida para os trabalhos. Às vezes são rupturas literalmente muito pequenas que me instigam, há trabalhos que surgem, por exemplo, da observação da eclosão das ninfas das cigarras, já em outras ocasiões, costumo observar os enormes espigões que aparecem de uma hora para outra no bairro Petrópolis, onde moro em Porto Alegre. Eles costumam vir vestidos por uma malha azul de proteção nas obras, assemelhando-se a grandes cachoeiras que derrubam as antigas casas e inundam de sombra o bairro.

IW: “Notas Diárias” é uma série que parece vir do cotidiano, de um certo cuidado, do gesto de acompanhar as pequenas coisas do entorno. Tu tens este hábito da observação e do registro dessas observações? Isso já vinha contigo (tinhas diários, coisas do gênero?) ou é algo que desabrocha na medida em que produzes artisticamente?


LM:
O trabalho “Notas Diárias” é uma série de desenhos em aberto. Quando a iniciei, minha ideia era voltar a trabalhar com pequenos formatos que permitissem produzir um desenho por dia, ao menos, de uma forma mais solta e despretensiosa. Queria retornar ao pastel seco, ao preto e branco ou ao uso pontual da cor. Nesses trabalhos eu registro referências que utilizo no ateliê, coisas que estão próximas, objetos para onde meu olhar aponta, imagens que guardei para revisitar. Há, por exemplo, um dia em que faltou luz e desenhei à luz de velas, nesses desenhos acabei queimando o papel com a vela que acendi. Esse trabalho funciona para mim como um retorno ao que está próximo no ateliê, como se fosse uma narrativa do processo também inspirada pelos elementos que o sul-africano William Kentridge produz em seus trabalhos.

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No começo da entrevista falei dessa minha inquietação frente à impermanência das coisas. Isso implica, necessariamente em pensar sobre a construção da nossa percepção do mundo e da nossa memória. No meu caso, acho que isso antes era carregado de uma melancolia maior, tinha uma ilusão, principalmente através do texto, de produzir documentos que me permitissem reviver as experiências. Desde que aprendi a escrever mantive meus diários pessoais e minha produção já teve uma relação muito estreita essa produção de diários, alguns trabalhos mais antigos são exatamente isso: um diário de experiência, em que normalmente eu estabelecia dias ou meses para a duração do trabalho, era assim que eu delimitava quando parar, foi com esse método que realizei o meu projeto de graduação no Instituto de Artes, intitulado “Delineamentos do Cotidiano: (des)alinhando o largo Dr. Adair Figueiredo” (2005). Nesse trabalho, eu me dispus a frequentar, durante um ano, o largo que se situa ao lado da minha casa. Dessa experiência de incursões no lugar, produzi um trabalho mais cartográfico, uma mistura de diários de desenho, cartazes em que nomeava a paisagem, vídeos, além de uma coleção de objetos organizados em uma instalação. Eu costumava ir à praça com uma mala amarela, onde tinha uma câmera fotográfica e materiais de desenho, sentava ali e produzia imagens e textos ou apenas parava para observar o entorno. Ao final tudo resultou em uma miscelânea de materiais que, ordenados, compuseram essa instalação. A diferença é que, no caso do trabalho “Notas diárias”, eu não me proponho a sair do ateliê, pelo contrário, é dentro dele que mergulho nos objetos e revisito meus arquivos, justo aquelas pastas de documentos, a maioria digitais, que você guarda para um dia utilizar, mas que, na prática, dificilmente acaba voltando a eles.

IW: Como surgiu “Área de Cultivo”, uma série marcante dentro de tua produção?

LM: A série é um desdobramento dos meus cadernos de desenho, que sempre foram experimentais e despretensiosos. Até 2007 eu trabalhava muito nesse formato de livro e caderno, até pelo fato de eu não ter um ateliê próprio que favorecesse a produção de trabalhos em grandes formatos. Nesses desenhos abstratos da série, eu comecei a entender a superfície do papel como um território a ser cultivado. São desenhos que começam sempre no chão, com a tinta bem diluída, em que eu não tenho um controle total sobre o que está sendo produzido, posteriormente, vou adicionando mais camadas até que os trabalhos vão para vertical e, nesta posição, os finalizo. Uma coisa é esse gesto mais propício ao acaso e que a mancha dilui, outra, são os gestos intencionais que produzem linhas mais gráficas e que remetem tanto às texturas das paisagens que observo, como ao próprio gesto primordial da escrita.
Costumo fazer uma relação dos papéis estendidos no chão com os tapetes árabes, em que também se faz essa relação com jardim desenhado e ornado para dentro das casas. Aproveitando essa metáfora do jardim, é importante dizer que, em muitos desses trabalhos, recorto partes do papel e enxerto em outros trabalhos, como se os campos pudesses migrar de um território a outro, como se o conjunto dos trabalhos funcionasse como uma espécie de jogo de encaixes. É surpreendente vê-los juntos no espaço expositivo.  Normalmente esses recortes na superfície são circulares, tanto para facilitar o encaixe, como para criar a sensação de lentes de aumento ou de túneis porosos que permitem a penetração de um trabalho no outro. Há o entendimento da própria superfície como um jogo de relações que se constrói junto com o acaso e a partir dos meios de que disponho no momento. Em alguns trabalhos adiciono insetos que caíram pelo ateliê no momento, ou pedacinhos das calçadas de ardósia que vão sendo corroídas pelas chuvas. Osório é uma cidade bem úmida e, por vezes, esses trabalhos levam semanas secando. É também um exercício de espera e paciência e costumo trabalhar em vários desenhos ao mesmo tempo, por isso, às vezes, há grupos de trabalhos em que utilizo tonalidades similares. Sobre o uso da cor, é nesta série que tenho desenvolvido e aprofundado o aspecto relacional da cor. A cor não existe por si mesma, são uma interação da luz com a matéria e, depois, uma abstração do nosso aparato da visão. Goethe tem belos estudos sobre a cor. Elas são sempre comparativas, sistêmicas, não existem de forma isolada.

IW: Além destes elementos provenientes da imagem que são perceptíveis em teu trabalho, o texto também aparece com força em tua produção. Palavras e nomeações aparecem em trabalhos como as instalações “Paisagem em Espera Azul”,  “Valor”, e também em desenhos como os que compõem a série “Atlas Cosmográfico”. Que papel a escrita ocupa em tua obra?

LM: Tenho uma paixão pela escrita e pela literatura e essa entrega envolve todo o meu processo de criação. Para mim, muitas vezes, meus diálogos são mais intensos e diretos com alguns poetas, como Rainer Maria Rilke e Octavio Paz, do que com artistas. Acho que meus diálogos com a produção em artes visuais se dá de uma maneira menos literal, tenho o cuidado para traçar referências mais indiretas. Em meu processo artístico há também uma relação com a escritura, conceito que Jacques Derrida aborda e também Roland Barthes, e que se define como um gesto de grafar que resguarda uma relação maior com o ritmo, mas não necessariamente está atrelado a um fonema. Nem sempre em meus trabalhos as palavras são legíveis, às vezes utilizo as letras apenas como grafias.
Na instalação “Paisagem em espera azul”, por exemplo, há o meu fragmento favorito retirado de “Cartas a um jovem poeta”, do Rilke, mas ele é pouco legível, crio certas dificuldades para a leitura. Já no letreiro “VALOR”, este super legível, há esse jogo com o negativo da palavra, a leitura se dá pelo vazio e a obra foi apresentada em uma mostra paralela à feira ArtBA, que discutia esse tema do mercado, colocava em questão a obra de arte como fetiche. Já a série “Atlas Cosmográfico” traz à tona um outro tipo de relação entre imagem e palavra, que lembra, em certo sentido, os trabalhos com caligramas de René Magritte. Nos trabalhos dessa série busco ordenar a rede de relações que estabeleço a partir de elementos que formam meu conceito de paisagem ou “landscape”, que é essa terra a se perder de vista. Nesses trabalhos há uma reflexão sobre o saber enciclopédico, a constituição do nosso pensamento científico, nossa mania de ordenação e uma brincadeira com a possibilidade de analogias que a linguagem poética sugere. Atribuo predicados à paisagem, associo estrelas da galáxia às estrelas da professora avaliando um desenho de quando eu era criança. Esse desenho é uma vista aérea da minha casa onde eu atribuo nomes às coisas, como aqueles primeiros exercícios de escrita que conhecemos.

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IW: Pegando esse gancho da escrita/palavra, tu destacarias alguma influência literária em tua obra (ainda mais agora, com o doutoramento), ou autores que te estimulem dentro do processo criativo?

LM: São muitas as minhas influências literárias, mas as que aparecem mais recorrentemente em minha obra e de um modo mais literal são Charles Baudelaire, Rainer Maria Rilke, Virginia Woolf, Wislawa Szymborska, Francis Ponge, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Octavio Paz, Julio Cortázar e T.S. Eliot. Por hora tenho sentido necessidade de mergulhar em outros autores e principalmente nos relatos de artistas viajantes. Há escritos e depoimentos de artistas que considero fundamentais, como os deixados por Robert Smithson, Hélio Oiticica ou produzidos por William Kentridge, Richter, Marina Abramovic e Bill Viola. Minhas conversas e convívio com artistas de outras gerações, como Maria Helena Bernardes, Renato Valle, Gil Vicente, Lia Menna Barreto, Marcelo Coutinho, Márcio Almeida, Alexandre Antunes e Carlos Pasquetti também me formam e substanciam.

IW: Teu percurso artístico tem um grande peso do desenho, embora tu transites por outros meios, como mostra a recente exposição individual “Landscape ou anotações sobre o que escapa”, que fizeste o Recife, em que apresentaste instalações, vídeos, fotografias, além de desenhos. Como tu vês este teu trânsito por diferentes expressões e, ao mesmo tempo, o diálogo dessas outras linguagens com o desenho por onde começaste?

LM: Meu pensamento é muito associativo, com isso, encontro dificuldade em me deter em uma única mídia. Gosto do desafio de juntar os diferentes. Vejo isso com entusiasmo. Por outro lado, gosto da simplicidade e da flexibilidade do desenho. Você pode criar um mundo apenas com um lápis, uma caneta e uma superfície (que pode ser até a própria pele). É muito simples e imediato, não precisa de carregar bateria, tampouco de grandes investimentos materiais, gosto disso, e é por aí que toda minha relação com a arte começa, tanto ao ver minha mãe desenhar (e isso me despertava uma profunda curiosidade), como ao perceber, desenhando na escola, que eu tinha uma facilidade natural para representar no papel o que eu via. Lembro das crianças dizerem que eu “sabia desenhar”, passei a escola toda desenhando para os outros colegas. Entrei no Instituto de Artes apenas com essa prática pessoal e autodidata do desenho e com meu interesse pela história da arte, despertado principalmente pelas viagens com a minha família. Eu era muito jovem (17 anos recém completos quando entrei na faculdade), nenhum caso de artista na família, um interesse múltiplo por várias áreas do conhecimento e pouco sabia sobre a realidade profissional do campo artístico, mas hoje vejo que isso foi até bom, porque fui descobrindo tudo com a própria prática, o que torna a coisa toda mais interessante, uma busca pessoal. Nesse sentido também encaro como um desafio essas inserções em campos e técnicas que não domino em absoluto e que, de acordo com cada projeto, vou descobrindo, isso faz com que eu me aproxime de outros profissionais e de outros campos do conhecimento. Não consigo viver sem buscar novos conhecimentos.

IW: Com uma década de produção, teu trabalho se modificou bastante ao longo do tempo. Que fases/momentos tu apontarias dentro desse desenvolvimento?

LM: Num primeiro momento, como já comentei, tinha mais fortemente essa prática do diário e dos cadernos de desenho. Meus trabalhos eram formados por conjuntos de fragmentos e, muitas vezes, eu montava desenhos em grande formato a partir de módulos pequenos. Às vezes esse fragmentos eram colados, outras, costurados. Sempre foi muito forte também essa minha relação com as mãos, elas sempre me ajudam a pensar.

Minha primeira exposição se chamou “Nas entrelinhas do diário”, a segunda nomeei “Tramas diárias”. Era uma ideia recorrente essa do diário, a difícil questão da delimitação da obra, onde ela começa e onde ela termina, um texto fundamental para mim sobre essa questão foi “O que é um autor?”, de Michel Foucault. No entanto, hoje esse tema da construção da memória a partir da vivência cotidiana desdobrou-se em outros conceitos, como a ideia deleuziana de criação da obra como território ou “área de cultivo”, como chamo, e a relação entre o cultivo da linguagem e da paisagem. No fundo ainda estou às voltas dessa questão do autoconhecimento e do deslocamento como uma alavanca para observar a impermanência das coisas, percebendo também o corpo poroso como essa interface com a qual interagimos com o ambiente.

Persisto ainda explorando as mesmas relações entre a palavra e a imagem, os pontos de convergência e divergência entre olhar e ler, entre ver e tocar. Permaneço com os mesmos interesses sobre o aparentemente banal, sobre a passagem do tempo e os acasos que nos cercam e fazem os projetos e intenções desmoronarem. Mas cada trabalho vai ganhando um tom e formato próprio, a maturidade ajuda a encontrar o melhor formato para cada experiência. Não costumo me ater a estilos, eles acabam vindo de modo natural, já que é impossível fugir por completo dos códigos que constroem o nosso olhar. Independentemente do formato final do trabalho, há um pensamento artístico comum. Encaro o meu modo de fazer como um permanente desafio para a reinvenção.

Com o passar do tempo acabei ampliando a escala dos trabalhos, explorando cada vez mais o aspecto da mostra individual como uma grande instalação que funciona como um ensaio e cria relações entre os trabalhos e destes com o espaço circundante. Passei a incluir em meu processo fortemente a prática da fotografia e do vídeo, mas até hoje reluto um pouco em apresentar ambas como trabalho final. Acho a fotografia, em geral, imediata demais e o vídeo lento demais. Gosto sempre de pensá-los em um conjunto onde consigo equilibrar esses tempos. Mais recentemente, no trabalho “No útero da linguagem”, incluí na instalação um novo elemento: o som, a partir da parceria com Giovani Bonin-Barbiere. Foi uma grande descoberta! E deverá ser mais explorada em trabalhos futuros. Atualmente tenho me dedicado a projetos cujos resultados são mais abertos, que nascem de colaborações e se estruturam em diálogo com outros profissionais, outros artistas. Tenho me aventurado tanto em travessias por diferentes regiões geográficas como campos do saber e ainda não sei bem aonde tudo isso vai me levar, mas tem sido apaixonante.

/no útero da linguagem/ experiência em estúdio, 2015.
Instalação de Lilian Maus (tecido oxford e plush, fibra de silicone e letras plásticas), Porto Alegre.
Trilha sonora: Giovani Bonin-Barbieri; Montagem: Alexandre Moreira; Costureira: Natália Trewiczenski; Foto: Biel Gomes.

OBS: Experiência em estúdio com 7 participantes que vestiam o manto produzido por Helen Rödel e, posteriormente, imergiam na instalação de Lilian Maus

* Isabel Waquil é jornalista e pesquisadora. Trabalhou em instituições como Atelier Subterrânea, SP-Arte, Fundação Iberê Camargo, Galeria Península, Goethe-Institut. Foi premiada em edital do MinC com a pesquisa de entrevistas Mulheres na Arte Contemporânea. É autora do livro “Subterrânea: Notas Entrópicas” (2015) e co-autora de “A palavra está com elas: diálogos sobre a inserção da mulher nas artes visuais” (2014).